"Fotografia 3x4, sem data e sem lugar...
um retrato de mim, sem nada pra dizer...
só um nome, um rosto, um olhar...
— E de repente, era sobre mim.
Eu cheguei em Fortaleza em meados de 2004/2005 com uma mochila surrada, um caderno de capa preta cheio de rabiscos existencialistas e aquela sede — não só de água, mas de vida, de descoberta, de me perder nos cantos da cidade até ela me adotar. Não tinha carro, não tinha amigos, só um endereço escrito num papel dobrado: casa da tia Conceição, esposa do tio Tarcísio (irmão do meu pai) no Conjunto Polar, Barra do Ceará, pertinho daquela praça onde os senhores do bairro jogavam dominó ao entardecer.
Mas tinha meu fone de ouvido
E foi nele, sintonizado na Universitária FM — entre chiados de antena e interferências — que ouvi pela primeira vez Fotografia 3x4. O violão cortou o ar como uma faca, a voz de Belchior escorreu pelos fones e eu... eu congelei no meio da calçada. "Como assim? Meu Deus, ele está cantando a minha vida". Aquela letra era meu retrato sem moldura: um jovem sem data certa, sem lugar "pra onde ir", só um nome e um olhar perdido no espelho de uma cidade grande demais.
"Eu me lembro muito bem do dia que eu cheguei...
Jovem que desce do norte pra cidade grandeOs pés cansados e feridos de andar légua tirana
De lágrimas nos olhos de ler o Pessoa
E de ver o verde da cana"...
E aí começou o ritual: todas as manhãs, eu saía com Belchior nos ouvidos. A música virou meu mapa afetivo.
— Na Ponte dos Ingleses (metálica), onde o vento soprava as páginas do meu caderno, eu entendia o verso:
Disso Newton já sabia, cai no sul, grande cidade".
"Examinando o 3X4 da fotografia
E estranhando o nome do lugar de onde eu vinha""Desses casos de família e de dinheiro eu nunca entendi bem
Veloso, o Sol não é tão bonito pra quem vem do norte e vai viver na rua"
Belchior me mostrou Fortaleza
Era assim: de manhã, pegava o ônibus pra UECE com o verso "A minha história é talvez igual a sua. Jovem que desceu do norte, que no sul viveu na rua" ecoando nos meus fones. À tarde, quando o sol queimava menos, eu começava meu ritual a pé — do Dragão do Mar até a Ponte dos Ingleses, onde me sentava pra ver o pôr do sol com o pessoal do Ceará. Eles contavam histórias de um tempo em que Belchior ainda andava por ali, "vendo as longarinas da ponte velha". Eu ouvia e imaginava.
Depois, subia pra Praça do Ferreira, onde o cheiro de castanhas e o burburinho de vendedores se misturavam ao refrão de "Fotografia 3x4; A minha história é igual a sua jovem que desceu do norte e que no sul viveu nas ruas", bem, graças aos meus - eu nunca precisei dormir na rua - mas eu via muita gente dormindo na rua, e o Belchior que ajudou a enxergar aquela gente - "os humilhados do parque". Dali, seguia pro prédio da Justiça Federal no Ceará, onde funcionava o Centro Cultural do Banco do Nordeste — meu templo. Lá dentro, consumia arte, poesia, exposições, e às vezes me perdia nos percursos urbanos que misturavam literatura com as ruas. De noite, rumava pro IFCE da 13 de Maio, toamava uma sopinha e ia encontrar com as namoradinhas, amigos, e consumir a cultura pulsante do Benfica. E quando a cidade já dormia, eu voltava pra casa da minha tia, com os últimos acordes de Belchior me acompanhando na caminhada.
Bel, "o tempo, andou mexendo com a gente"
Anos depois, hoje, passeando com meu filho - João - " Johnnnnnnn, o tempo andou mexendo com a gente, sim", morando e vivendo Fortaleza . E tudo — absolutamente tudo — ainda tem o mesmo cheiro, o mesmo calor, a mesma luz. Só que agora eu entendia: Belchior não estava só no meu fone de ouvido. Ele estava no asfalto quente do entorno da Praça do Ferreira, no vento que varria a Ponte dos Ingleses, nas conversas do pessoal do Ceará, no silêncio do Centro Cultural. Ele tinha me ensinado que cidades são feitas de passos e memórias — e que algumas canções são como mapas.
Hoje, meu filho João — que nem havia nascido quando Belchior partiu — escuta no rádio a nossa "fotografia 3x4". Ele erra a letra, ri, e tenta de novo. E eu penso: "É isso. O tempo não para -não para não, não para."
João não viveu os anos 90, não sabe o que é esperar uma música tocar no rádio para gravá-la em fita cassete. Mas ele conhece Belchior. E quando canta "mesmo vivendo assim, não me esqueci de amar", é como se o poeta estivesse ali, no meio da sala, sorrindo desse menino de quase 8 anos que decifra o mundo através dele.
Belchior não morreu.
E é exatamente isso, Belchior.
8 anos sem você são 8 anos de você em todo lugar.
Nos meus discos riscados.
Nas minhas caminhadas sem rumo.
No meu filho — que ajudei a te descobrir, e te achou como quem acha um tesouro esquecido no bolso de um casaco de couro rasgado.
O rio da vida não volta, é verdade.
Mas algumas vozes... ah, algumas vozes são como sementes.
Elas atravessam o tempo, germinam em solos desconhecidos e florescem onde deve florescer.
Hoje, João canta fotografia 3x4.
E eu, orgulhoso e despedaçado, escuto da cozinha.
Enquanto a água cai, eu juro ouvir você sussurrar:
"Tá vendo? Eu avisei.
O tempo é imparável."
Por isso hoje, quando ouço - com o little John - Fotografia 3x4, não ouço só uma música.
Ouço o retrato de quem eu fui. De quem sou. E de quem sempre serei.
Anos depois, descobri: ele não cantava minha vida. Cantava a vida de todos nós — os sem data, os sem lugar, os que chegam com uma mochila e um sonho na cidade grande.
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