quarta-feira, 30 de abril de 2025

Belchior me mostrou Fortaleza - e foi bom demais - 8 anos de saudades Bel...

 



"Fotografia 3x4, sem data e sem lugar...
um retrato de mim, sem nada pra dizer...
só um nome, um rosto, um olhar...

— E de repente, era sobre mim.

Eu cheguei em Fortaleza em meados de 2004/2005 com uma mochila surrada, um caderno de capa preta cheio de rabiscos existencialistas e aquela sede — não só de água, mas de vida, de descoberta, de me perder nos cantos da cidade até ela me adotar. Não tinha carro, não tinha amigos, só um endereço escrito num papel dobrado: casa da tia Conceição, esposa do tio Tarcísio (irmão do meu pai) no Conjunto Polar, Barra do Ceará, pertinho daquela praça onde os senhores do bairro jogavam dominó ao entardecer.

Mas tinha meu fone de ouvido

E foi nele, sintonizado na Universitária FM — entre chiados de antena e interferências — que ouvi pela primeira vez Fotografia 3x4. O violão cortou o ar como uma faca, a voz de Belchior escorreu pelos fones e eu... eu congelei no meio da calçada. "Como assim? Meu Deus, ele está cantando a minha vida". Aquela letra era meu retrato sem moldura: um jovem sem data certa, sem lugar "pra onde ir", só um nome e um olhar perdido no espelho de uma cidade grande demais.

"Eu me lembro muito bem do dia que eu cheguei...

Jovem que desce do norte pra cidade grande
Os pés cansados e feridos de andar légua tirana
De lágrimas nos olhos de ler o Pessoa
E de ver o verde da cana"... 

E aí começou o ritual: todas as manhãs, eu saía com Belchior nos ouvidos. A música virou meu mapa afetivo.

— Na Ponte dos Ingleses (metálica), onde o vento soprava as páginas do meu caderno, eu entendia o verso: 

 "Pois o que pesa no norte, pela Lei da Gravidade
Disso Newton já sabia, cai no sul, grande cidade".

— No Dragão do Mar, entre artistas de rua e cheiro de grama, na praça verde, "eu não tinha medo do tempo, nem do que viesse a ser" ganhava novo sentido.

"Examinando o 3X4 da fotografia

E estranhando o nome do lugar de onde eu vinha"


— Na Praça do Ferreira, sob o sol das 15h, eu murmurava 

"Desses casos de família e de dinheiro eu nunca entendi bem

Veloso, o Sol não é tão bonito pra quem vem do norte e vai viver na rua"

E todas as noites, voltava pra Barra do Ceará com a certeza de que Belchior não estava só no rádio. Ele estava no asfalto quente que queimava meus pés descalços de sonhador, no olhar dos vendedores ambulantes, no cheiro de maresia que invadia o Polar.

Belchior me mostrou Fortaleza

Era assim: de manhã, pegava o ônibus pra UECE com o verso "A minha história é talvez igual a sua. Jovem que desceu do norte, que no sul viveu na rua" ecoando nos meus fones. À tarde, quando o sol queimava menos, eu começava meu ritual a pé — do Dragão do Mar até a Ponte dos Ingleses, onde me sentava pra ver o pôr do sol com o pessoal do Ceará. Eles contavam histórias de um tempo em que Belchior ainda andava por ali, "vendo as longarinas da ponte velha". Eu ouvia e imaginava.

Depois, subia pra Praça do Ferreira, onde o cheiro de castanhas e o burburinho de vendedores se misturavam ao refrão de "Fotografia 3x4; A minha história é igual a sua jovem que desceu do norte e que no sul viveu nas ruas", bem, graças aos meus - eu nunca precisei dormir na rua - mas eu via muita gente dormindo na rua, e o Belchior que ajudou a enxergar aquela gente - "os humilhados do parque". Dali, seguia pro prédio da Justiça Federal no Ceará, onde funcionava o Centro Cultural do Banco do Nordeste — meu templo. Lá dentro, consumia arte, poesia, exposições, e às vezes me perdia nos percursos urbanos que misturavam literatura com as ruas. De noite, rumava pro IFCE da 13 de Maio, toamava uma sopinha e ia encontrar com as namoradinhas, amigos, e consumir a cultura pulsante do Benfica. E quando a cidade já dormia, eu voltava pra casa da minha tia, com os últimos acordes de Belchior me acompanhando na caminhada.

Bel, "o tempo, andou mexendo com a gente"

Anos depois, hoje, passeando com meu filho - João - " Johnnnnnnn, o tempo andou mexendo com a gente, sim", morando e vivendo Fortaleza . E tudo — absolutamente tudo — ainda tem o mesmo cheiro, o mesmo calor, a mesma luz. Só que agora eu entendia: Belchior não estava só no meu fone de ouvido. Ele estava no asfalto quente do entorno da Praça do Ferreira, no vento que varria a Ponte dos Ingleses, nas conversas do pessoal do Ceará, no silêncio do Centro Cultural. Ele tinha me ensinado que cidades são feitas de passos e memórias — e que algumas canções são como mapas.

Hoje, meu filho João — que nem havia nascido quando Belchior partiu — escuta no rádio a nossa "fotografia 3x4". Ele erra a letra, ri, e tenta de novo. E eu penso: "É isso. O tempo não para -não para não, não para."

João não viveu os anos 90, não sabe o que é esperar uma música tocar no rádio para gravá-la em fita cassete. Mas ele conhece Belchior. E quando canta "mesmo vivendo assim, não me esqueci de amar", é como se o poeta estivesse ali, no meio da sala, sorrindo desse menino de quase 8 anos que decifra o mundo através dele.

Belchior não morreu.

Ele se transformou no vento que balança o ipê amarelo da nossa rua.
Nas histórias que eu conto pra João sobre Fortaleza — aquela cidade que já foi minha e agora é nossa.
No silêncio que a gente compartilha quando Fotografia 3x4 toca no carro e os dois ficamos calados, olhando o horizonte.

João me pergunta: "Pai, por que você gosta tanto dele?"
E eu respondo com outra pergunta: "Por que você gosta?"
Ele encolhe os ombros e diz: "Não sei. Só sei que quando escuto, parece que ele tá falando comigo."

E é exatamente isso, Belchior.

8 anos sem você são 8 anos de você em todo lugar.
Nos meus discos riscados.

Nas minhas caminhadas sem rumo.
No meu filho — que ajudei a te descobrir, e te achou como quem acha um tesouro esquecido no bolso de um casaco de couro rasgado.

O rio da vida não volta, é verdade.
Mas algumas vozes... ah, algumas vozes são como sementes.
Elas atravessam o tempo, germinam em solos desconhecidos e florescem onde deve florescer.

Hoje, João canta fotografia 3x4.
E eu, orgulhoso e despedaçado, escuto da cozinha.
Enquanto a água cai, eu juro ouvir você sussurrar:

"Tá vendo? Eu avisei.
O tempo é imparável."

Por isso hoje, quando ouço - com o little John - Fotografia 3x4, não ouço só uma música.

Ouço o retrato de quem eu fui. De quem sou. E de quem sempre serei. 

Anos depois, descobri: ele não cantava minha vida. Cantava a vida de todos nós — os sem data, os sem lugar, os que chegam com uma mochila e um sonho na cidade grande.

quarta-feira, 23 de abril de 2025

Francisco; Diplomata da Paz

 



Na última segunda-feira, 21 de abril, recebemos a notícia do falecimento do Papa Francisco, aos 88 anos.

Figura central da comunidade católica, a morte de Jorge Mario Bergoglio, o 266º papa da Igreja, gerou comoção em todo o mundo — inclusive entre aqueles que não professam o catolicismo ou seguem qualquer religião.

Mas por que tanta repercussão?

Porque Francisco, em vida, foi mais do que um líder espiritual. Foi um verdadeiro diplomata da paz, um defensor incansável da dignidade humana.

Durante seu legado papal, ele colocou o bem-estar dos povos acima de qualquer distinção — de raça, sexo, classe social ou religião.

Quer alguns exemplos?

Francisco realizou mais de 40 viagens internacionais, priorizando periferias esquecidas e países marginalizados, como os do leste europeu e do continente africano.
Defendia o multilateralismo, a cooperação entre os povos e repudiava a guerra e o comércio de armas.
Mesmo como representante máximo da Igreja Católica, sempre dialogou com todas as religiões, buscando pontes em vez de muros.
Levantou, com coragem, as bandeiras dos direitos das minorias, dos imigrantes e da preservação do meio ambiente — temas que, muitas vezes, causam desconforto até dentro da própria Igreja.

E o que tudo isso tem a ver com você?

Tem tudo.

Porque a diplomacia de Francisco  não se mede apenas por títulos, idiomas ou passaportes carimbados.
A Diplomacia do nosso Francisco, na essência, nos mostrou a capacidade de representar os interesses dos ideais de cristo com coragem, sensibilidade e compromisso com o bem comum.

O Papa Francisco nos ensinou que o verdadeiro prestígio está em servir, e não em se servir.

Portanto, lembre-se: o que constrói um legado não é o glamour do cargo, mas o impacto que sua voz, suas ações e suas decisões terão na vida das pessoas — principalmente daquelas que mais precisam ser ouvidas.

Esse é o tipo de diplomata que o mundo precisa.
E esse foi o tipo de líder que hoje o mundo se despede, com gratidão.


Esperança é a primeira autobiografia de um papa. Um relato completo, trabalhado ao longo de seis anos, que parte do início do século XX até o momento presente. Com fotos do acervo pessoal do papa, é um testamento moral e espiritual de uma vida dedicada a ajudar ao próximo. https://amzn.to/3YIOVaE

Faróis da Humanidade: Entre a luz do conhecimento e as sombras da Ignorância

 


Ao longo da história da humanidade, os faróis sempre ocuparam um papel que transcende o seu uso original (náutico). De guias para embarcações perdidas ou que precisam se orientar a símbolos do esclarecimento e da resistência, essas estruturas se tornaram metáforas poderosas da busca humana por direção, conhecimento e segurança em tempos de incerteza.

Faróis que marcaram civilizações

Desde os tempos mais antigos, os faróis não são apenas estruturas de pedra e luz — são símbolos do instinto humano de orientar, proteger e seguir adiante, mesmo em meio às tempestades.

Em uma era em que o mar era o maior desafio, o desconhecido absoluto, o farol surgiu como promessa e referência. Sua chama, mesmo solitária e distante, significava esperança. Um ponto fixo no horizonte que dizia aos navegantes: a terra está próxima, você não está perdido.

O Farol de Alexandria, uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo, não foi apenas um prodígio da engenharia helenística — foi um monumento à confiança no conhecimento, à capacidade humana de dominar a escuridão com ciência e intenção. Construído no século III a.C. na ilha de Faros, no Egito. Reconhecido como uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo, esse monumento de engenharia não apenas orientava navegadores no mar Mediterrâneo, mas também simbolizava o esplendor intelectual da cidade que abrigava a maior biblioteca do mundo antigo. A luz de Alexandria não era apenas literal — era cultural, científica e filosófica.


Séculos depois, na costa britânica, o Farol de Eddystone tornou-se ícone de resiliência. Reconstruído diversas vezes após desastres naturais, ele representou a obstinação humana em manter acesa a chama da orientação mesmo diante do caos.

Nos Estados Unidos, o Farol de Cape Hatteras, com seus imponentes 64 metros de altura, foi realocado por inteiro em 1999 para evitar seu colapso diante do avanço do mar — um feito de engenharia, sim, mas também um gesto de respeito à memória coletiva e ao valor simbólico do monumento.

Faróis como metáfora do saber

Na história moderna, a figura do farol passou a ser usada também como metáfora do esclarecimento humano. Em tempos de alfabetização em massa, reformas educacionais ou renascimentos culturais, o “acender do farol” se tornou sinônimo de iluminar consciências, romper com a escuridão da ignorância e oferecer caminhos de emancipação social.

Nesse contexto, surge o Farol de Itapajé, no interior do Ceará. Construído não como instrumento náutico, mas como monumento cívico, ele se impôs na paisagem como marco simbólico da superação do analfabetismo e do progresso educacional. Sua forma e função comunicavam o essencial: aqui se acendeu uma luz, aqui a ignorância foi desafiada.

A demolição de um símbolo: retrocesso disfarçado de fé

Recentemente, na minha cidade, um farol semelhante — construído em 2004 para marcar um tempo de conquistas sociais, educacionais e urbanas — foi demolido pela atual gestão municipal. Em seu lugar, foi erguida uma imagem religiosa, numa operação que simboliza mais do que uma troca estética: representa um apagamento da memória coletiva e uma afronta ao caráter laico do Estado e à inteligência da população.

Não se trata aqui de desrespeito à fé, mas de um grave equívoco simbólico. O farol derrubado não era apenas concreto. Era um marco da alfabetização, um sinal visível de que a luz do conhecimento havia chegado. Destruí-lo é, em certa medida, celebrar a volta da escuridão — e isso jamais pode ser naturalizado.

Faróis não apenas iluminam — eles lembram

Em tempos de neblina institucional, de discursos que manipulam a fé para justificar decisões autoritárias, é urgente lembrar: os faróis existem para evitar naufrágios. Quando se derruba um farol, mesmo que simbólico, deixa-se a cidade à deriva.

Por isso, o repúdio a esse ato não é apenas legítimo — é necessário. É um grito contra o esquecimento, contra o retrocesso disfarçado de devoção. É a defesa da luz, da memória e do direito à história

domingo, 13 de abril de 2025

 


FORTALEZA, 299 ANOS – DAS ORIGENS À CIDADE QUE NOS ESCOLHE

Hoje, 13 de abril, Fortaleza celebra 299 anos de elevação à categoria de vila. Muito antes disso, porém, a história já pulsava forte por essas bandas banhadas pelo Atlântico e varridas pelo vento alísios de nordeste.

A origem de Fortaleza remonta ao início do século XVII, quando o navegador e colonizador português Martim Soares Moreno ergueu o Fortim de São Tiago, dando início à ocupação militar e religiosa da região. Em 1649, os holandeses, que disputavam o território com os portugueses, construíram o Fort Schoonenborch, que anos mais tarde, em 1654, foi retomado pelos portugueses e rebatizado como Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção — nome que inspiraria o batismo da cidade.

É dessa fortaleza — símbolo de resistência e colonização — que nasce o nome da cidade. E é a partir dela que Fortaleza se espraia em direção ao tempo e à modernidade.

Fortaleza dos verdes mares bravios, cantada nos versos da Iracema de José de Alencar, a virgem dos lábios de mel e cabelos pretos "mais negros que as asas da graúna", símbolo de uma terra fértil em lenda, amor e dor.

Fortaleza do Dragão do Mar, nome pelo qual ficou conhecido Francisco José do Nascimento, o Chico da matilde, líder jangadeiro que se recusou a embarcar escravizados no porto da cidade, tornando-se símbolo de luta e dignidade no Ceará e em todo o Brasil.

Fortaleza, Terra da Luz, assim nomeada por ter sido o primeiro lugar do Brasil a abolir a escravidão, quatro anos antes da Lei Áurea, num gesto de vanguarda e humanidade que até hoje orgulha seu povo.

Ao longo dos séculos, Fortaleza se transforma em capital, cresce, se verticaliza, se expande para o sertão e para o mar. Torna-se polo turístico, centro político, cultural e econômico. Uma cidade viva, em constante reinvenção.



Hoje, ao completar 299 anos, Fortaleza não pertence apenas aos que nela nasceram. Pertence também aos que ela escolhe e acolhe. Assim como Icaraí de Amontada, Itarema e Sobral, ela também me adotou — e é com gratidão que celebro essa terra que me ensina a cada dia. 

Que seus próximos séculos sejam de desenvolvimento com justiça, de beleza com inclusão, de história com futuro. Que cada bairro, cada beco, cada praia e praça, continue sendo cenário de sonhos — e não de abandono.



Parabéns, Fortaleza. Cidade dos encontros, dos contrastes e dos encantos. Cidade que nos desposa. Cidade que nos forma. Cidade que nos transforma.


Fotos do Ciro Sabóia @cirofotografias (instagram)

quinta-feira, 10 de abril de 2025

E se você fosse o leão?

 



“A gente aprendeu que tem que matar um leão por dia.

Mas ninguém avisou que isso nos tornaria leões também.
Violentos, apressados, sem escuta.”

“Dylan escreveu sobre entrar no coliseu.
Lá dentro, ele não matou os leões.
Ele viu o tempo passar, e domou os próprios monstros.
Isso me atravessou como um raio.
Porque é isso: o leão não está lá fora. Tá aqui dentro.”


“Um homem caminhava todos os dias pela mesma estrada.
Carregava nos ombros a obrigação de matar um leão por dia.
Disseram pra ele que era isso que homens de verdade faziam.

Levanta, luta, vence.

Ele acreditou.
E assim foram dias... semanas... anos.”


“Até que um dia, exausto, entrou no velho coliseu esquecido pelo tempo.
Ninguém o perseguia. Ninguém o aplaudia.
Ele apenas entrou...
E se sentou.”

“Lá dentro, havia muitos leões.
Mas eles não estavam rugindo.
Estavam deitados. Observando.
Como se também estivessem cansados daquela dança absurda de sangue e glória.”

“O homem respirou.
Olhou nos olhos do primeiro leão.
E entendeu algo:
aquele leão... era ele mesmo.
Suas raivas, suas dores, seus medos…
Todos tinham forma felina.”


“O tempo passou. Muito tempo.
Ninguém sabe quanto.
Só se sabe que, ali dentro, ele aprendeu a ouvir o silêncio.
E em algum momento, lembrou de Daniel.
O outro homem que entrou numa cova cheia de leões…

E saiu de lá sem um arranhão.”

Daniel 6;22 "O meu Deus enviou o seu anjo e fechou a boca aos leões, para que não me fizessem dano, porque foi achada em mim inocência diante dele; também contra ti, ó réi, não cometi delito algum."


“Mas não foi mágica.
Foi escuta. Foi presença.

Foi entrega.”  

“Em outro tempo, outro homem — um que escrevia músicas — também entrou num coliseu.
Ele cantou sobre isso:
sobre domar o tempo…
sobre ver as horas passarem sem medo…
sobre fazer alquimia com o caos.”

“Chamavam esse homem de Dylan.
Mas podia ser qualquer um de nós.”


“E o primeiro homem?

Dizem que um dia ele saiu do coliseu.
Mas já não era o mesmo.
Caminhava mais leve.
Não carregava mais espadas.
E quando perguntavam o que ele fazia da vida, ele sorria:
Eu escuto meus leões.