segunda-feira, 9 de junho de 2025

Fotografia que eterniza momentos: Félix Arnaudin e os pastores das Landes

 


No tempo em que a terra era vasta e os caminhos incertos, havia um homem que caminhava entre os ventos, com olhos que viam além do presente. Félix Arnaudin não era apenas um viajante, mas um guardião da memória.

Nas planícies desoladas, pastores erguiam-se sobre altas estacas de madeira, como sentinelas de um reino que estava desaparecendo. Eles não caminhavam pelas estradas dos homens, mas pelos caminhos da criação, elevados acima da lama e da incerteza. Suas vestes eram simples, suas vidas solitárias, mas sua missão era grande: guiar os rebanhos, proteger o que lhes foi confiado.



Assim como um pastor conhece cada uma de suas ovelhas, Félix conhecia cada rosto, cada canção e cada sombra que pairava sobre sua terra. Ele não apenas viu o que estava desaparecendo—ele sentiu. E, como um escriba dos tempos antigos, gravou em prata e luz aquilo que o mundo já começava a esquecer.

Mas veio o progresso, e os caminhos foram pavimentados. Os pântanos secaram, e os pastores desceram de suas alturas. O que antes era necessário tornou-se relíquia. O que antes era vida tornou-se lenda. Muitos seguiram em frente, sem olhar para trás. Mas Félix permaneceu, como um profeta anunciando que não se deve esquecer os dias antigos.

Suas imagens tornaram-se testemunho, e através delas, os pastores das Landes nunca desapareceram completamente. Como um bom pastor que nunca abandona seu rebanho, Félix manteve viva uma história que poderia ter sido apagada. Assim, através da sua obra, os ecos da Gasconha ainda ressoam—altos, firmes e silenciosos, como sentinelas de um passado que ainda tem algo a dizer.


domingo, 8 de junho de 2025

OCEANOS VERSUS MARES: Reflexões para o Brasil e o Ceará no dia mundial dos oceanos


 

À memória de Melquíades Pinto Paiva (1930 –2021), Fundador da Estação de Biologia Marinha, posteriormente, Instituto de Ciências  do Mar – Labomar/UFC,  coordenador da equipe responsável pelo levantamento dos dados pretéritos, referentes a recursos pesqueiros, estuarinos e marinhos do Brasil, junto ao Programa de Recursos Vivos da Zona Econômica Exclusiva – REVIZEE. Visionário da Oceanografia Biológica, cuja paixão pelos oceanos inspira gerações, e em homenagem aos pesquisadores brasileiros que, como ele, desbravam o azul profundo com ciência e coragem.

“Verdes mares bravios de minha terra natal

Onde canta a Jandaia nas frondes da carnaúba...”
— José de Alencar

 

No Brasil, e especialmente no Ceará, estado nordestino banhado pelo bravio Atlântico tropical, a distinção entre mar e oceano é, muitas vezes, diluída na linguagem cotidiana. A praia, lugar de encontro do sertanejo com o mar, carrega mais memórias afetivas que definições científicas. É fundamental recuperar a precisão conceitual, conforme nos recorda o ilustre professor, herdeiro da tradição de dona Fideralina Augusto (1832-1919).

O oceano é vasto, profundo, um corpo planetário — ele é o Okeanós dos gregos, o grande fluxo que circunda a Terra. Já o mar é recorte, é borda, é margem — a thalassa, o espaço entre continentes, muitas vezes limitado e mais raso. No Ceará, poderíamos dizer que o que vemos das falésias de Beberibe ou das praias de Almofala é o mar, sim — mas ele é parte do Oceano Atlântico, esse corpo contínuo que conecta o Brasil à África, à Europa e aos fundos abissais.

A ciência brasileira, nos últimos 60 anos, deu passos significativos no estudo deste domínio marinho. No Ceará, apesar dos recursos ainda limitados, temos visto o florescimento de pesquisas em geologia marinha, geomorfologia costeira, dinâmica sedimentar e gestão integrada da zona costeira, com instituições como a UFC, UECE, Labomar, LGCO entre outros sendo protagonistas desse avanço.

Assim como os europeus participaram do Deep Sea Drilling Project, também o Brasil, com o navio Vital de Oliveira e programas como o LEVANTAMENTO DA MARGEM EQUATORIAL, vem investindo em conhecimento dos seus fundos oceânicos. As pesquisas sobre a caracterização sedimentológica e geomorfológica da Plataforma Continental brasileira tiveram seu impulso inicial entre as décadas de 1960 e 1980, destacando-se as Operações GEOMAR, promovidas pelo grupo do PGGM, Projeto REMAC (Reconhecimento da Margem Continental). Ainda estamos longe de uma atuação comparável em escala, mas as sementes foram lançadas — especialmente na luta pela Amazônia Azul, conceito estratégico que associa soberania à pesquisa científica e conservação marinha.

No Ceará, com seus 573 km de costa, a questão costeiro-marinha é urgente. O avanço do mar, a erosão, a degradação de recifes e a pressão da especulação imobiliária/turismo desordenado impõem desafios sérios, que exigem conhecimento profundo da interação entre marés, correntes, sedimentos e ações humanas. E aqui voltamos à distinção: é no mar, este recorte costeiro, que sentimos mais diretamente os efeitos da ação oceânica.

A geodiversidade marinha cearense, com sua plataforma carbonática, rochas de praia, eólianitos, os quartzitos de Jericoacoara e extensas planícies de maré, é um campo fértil para o avanço da Oceanografia Geológica. As bacias oceânicas profundas, para além da Plataforma Continental Brasileira, conectam-se diretamente com processos globais, como a dinâmica tectônica, a circulação termohalina, ondas de Rossby e a história sedimentar do planeta — campos ainda pouco explorados por nossos cientistas regionais.

Celebrar o Dia Mundial dos Oceanos no Brasil, e no Ceará em particular, é reconhecer que nossa história — indígena, africana, europeia, litorânea — tem no mar não apenas um espaço de contemplação, mas de vida, de conflito, de sobrevivência e, sobretudo, de oportunidade. A transição energética, a economia azul e a proteção da biodiversidade marinha são temas contemporâneos que exigem uma nova geração de cientistas costeiros e oceanográficos.

Assim como professor Melquíades e seus colegas do Labomar inspiraram uma era de descobertas com o Barco de pesquisa da UFC professor Martins Filho, cabe a nós, brasileiros, especialmente nordestinos, inspirar uma nova era de protagonismo científico no Atlântico Sul. A talassografia — esse belo termo grego — precisa de sotaques tropicais, nordestinos, indígenas, quilombolas, cearenses.

Que o mar, essa entidade dinâmica e instável, siga nos provocando perguntas. E que o oceano, esse sistema profundo e ainda insondado, continue sendo o espelho onde buscamos entender não só a Terra, mas a nós mesmos.

 

“Serenai verdes mares, e alisai docemente

a vaga impetuosa, para que o barco

aventureiro manso resvale à flor das águas.

Onde vai a afouta jangada, que deixa

 rápida a costa cearense,

aberta ao fresco terral a grande vela?”

- José de Alencar